AUTORAMENTE | Poemas de Karina Pizzini
Poema 1
Embriaguez
Decidida a não beber nem mais um gole, entro em casa e sinto o cheiro da vodka exalando nas paredes. Focada a me afastar do vício, tento tirar o ranço impregnado em mim do último porre. Não sei nem em que momento dei o primeiro gole. Só lembro do dia seguinte, o mal-estar e a dor de cabeça. A fusão de alegria repentina, encorajamento, derrota e arrependimento. Lembrara do último porre semelhante, há anos…
O gosto ruim não sai da garganta e é como se todos ao meu redor resolvessem fumar.
Arr… o gosto do cigarro me faz vomitar. Não lembro nem por que comecei a fumar.
A vodka e o cigarro invadem a cama sem pedir licença, e eu nem lembro de deixar entrar. Me fecho. Me isolo na tentativa de não me embriagar.
Resetar a memória.
Rememorar.
Dar um novo começo e um novo meio,
E nem me lembro de ter deixado – sequer – iniciar.
Mas o ranço etílico insiste em ficar.
Bate em minha porta como velhos amigos e ignora a noite passada.
Eu disse àquele copo que seria o último e tenho certeza que ele concordou.
Se não me engana a memória fatigada, foi ele mesmo quem disse pra ficar:
“Chega mais, sinta meu cheiro, anseie meu gosto… mas não me beba”.
“Dê um gole, leve, despretensioso, mas não se embriague.”
Os cacos ainda estão no chão da sala, assim como o resto daquela vodka barata.
Mas acordei decidida a limpar a bagunça.
Passarei a tomar chá!
Cansei de destilados viciantes em minha vida. É problema. Sempre é.
Vício maldito.
Freud explica, diria.
E explica mesmo, mas não cessa o vício que bate ignorando o porre da noite passada.
Dissimulada.
Faz questão de alimentar o ranço, que fede a culpa e a covardia.
Entro em casa e é o ranço que me persegue.
Equivocada, acabo por beber o resto dela,
Porque entre a loucura sóbria e a embriaguez, que me chamem de bêbada.
Poema 2
Nudez
Você me pede ajuda e nos despimos
Você tira a roupa lentamente
Age como se fosse a primeira vez
Me pergunta se eu quero vê-lo assim
Eu afirmo com a cabeça,
com os olhos atentos ao que via
Tamanha beleza
Tamanha inocência
O vejo nu como nunca
Você se vê nu como nunca se permitiu
Pede minha ajuda
Se arrepende e se veste rapidamente
Não consegue encarar tamanha nudez por muito tempo
Se veste rapidamente enquanto se diz pronto
Vejo nos seus olhos o desejo de estar
Mas não consegue
É demais
Pede que façamos com calma
Acato
Por traz da sua nudez havia a minha
Ela não me incomoda
Mas seu incômodo me intrigava
Afinal, também me despia
Mas segui o seu ritmo
Assim, me vesti rapidamente
Você me pediu e eu atendi
Enquanto você se encarava em frente ao espelho
Me via nua
Exposta
Sua verdade, no entanto, era doce
Não permitiria que também fosse à frente do espelho
… protetor
Nos despimos várias vezes aquela noite
No dia seguinte também
Mas não estávamos prontos para isso
Ou talvez estivéssemos,
mas era demais para uma noite só
Nos vestimos lentamente da última vez
Nos olhamos com carinho
E partimos em silêncio.
Poema 3
Ecoa Lar
E o espaço agora parece grande de novo
A luz cruza todos os cômodos, num clarão que lhe é típico
Impressionante como nossas coisas, todas as coisas,
móveis, plantas, pessoas, quadros e bugigangas também nos trazem sombras.
Sombras confortáveis, acolhedoras, que às vezes nos fazem esquecer do clarão que reflete ao piso e às paredes amarelas no vazio.
Amplidão.
Paredes em branco.
Vazio.
Parece que até o ar passa melhor, circulando sem barreiras, como se voltasse ao seu habitat natural…
Era grande de novo, assim como quando chegou.
Vazio, que no vazio ecoa.
Ecoa alto o início e o fim
A transmutação.
…
Era grande, novo.
Solitário.
Imenso e iluminado.
Qualquer coisa ali caberia.
…
E coube.
Muito coube.
Muitos e muitas.
No vazio se fez família e sorte.
Morte e renascimento.
Coube a noção de lar, e coube o desapegar
Couberam ressignificados,
– talvez foi isso o que mais coube.
Olhar esse vazio, assim como da primeira vez, é ressignificar.
É ver cômodos vazios e não se sentir esvaziada,
nem na chegada e nem na partida.
É ver cômodos vazios e ver que não é preciso preenchê-los.
É encontrar no vazio a noção de Ser
É encontrar no vazio a noção Ser Lar – o lar dos lares.

A autora
Karina Pizzini é jornalista catarinense, mestre em Comunicação, pesquisadora de feminismos e mobilização digital, tem a escrita como ferramenta de trabalho e de autopercepção.
Sobre o autor
- Editor-chefe da TXT, Daniel Mascarenhas Osiecki nasceu em Curitiba, em 1983. Escritor e editor, publicou os livros Abismo (2009), Sob o signo da noite (2016), fellis (2018), Morre como em um vórtice de sombra (2019), Trilogia Amarga (2019) tendo mais dois no prelo: 27 episódios diante do espelho e Fora de ordem. Editor-adjunto da Kotter Editorial, é mestre em Teoria Literária e organizador do sarau-coletivo Vespeiro - vozes literárias.
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