AUTORAMENTE | Poemas de Cristiano Moreira
Poema 1
Barcos retornam ao mar
Aos poucos /os barcos retornam ao mar
depois de tempo //deitados no estaleiro
prostrados no pátio / outroceano //deserto//
saudades do sonho/ dos solavancos/
necessário calafetar/ as novas tábuas/ afinar as tíbias
para amansar os ventos//costurar costados
outros reparos/tanta tinta
//
Tempo espuma beira/ cascos secos/ saliva de banzeiro/
barcos /não viajam sozinhos// pauta em silêncio
não singra as águas/ sem ossos /nem notas
convida à pausa/ o nevoeiro
//
Tripulação à bordo/ calado submerso/ quase cidade/
navegam sua música/ grandes poemas de madeira/
homens vivos/ rumo a outro confim/ à linha-lugar-do-sol/
raios irisados nas anilhas/ a refração sobre ondas/
anuncia nova safra nas flores de sal/
no cardume/ o retorno do real encoberto/ainda/
pelas lâminas d`água do presente / inda agora/
tanta gente/ cujos olhos marejados /
catam peixes no convés/de joelhos/ matam saudade
de tantos/outros que seguiram outros mares.
Poema 2
Mãos
diferir-se da besta pela forma
das falanges e número de dobras
a unha do polegar sob a do dedo mínimo
despista dor na corrente dos meridianos
manifesto a energia atarantada dos rins
no silêncio e na sombra das olheiras
o animal do homem foge entre
as pernas das mulheres, diria francis ponge
o espaço de nosso sistema solar tem o mapa
riscado na palma da mão aberta, como peixe escalado
esmagar a mão é subtrair a ficção
fazer dela – a mão- uma escritura informe
o sinal da cruz na testa untada
à espera da morte, vagão vazio
a mão procura o tato e afasta a solidão
na comuna do aperto, nos gestos nos mudrás
o quiromante é um navegador
entre células cortes e constelações
calafate, carpinteiro, alfaiate
nacionalidades no território das mãos
os reis magos traziam nas mãos
vestígios da cauda do cometa
contra a mão dominante e alicate
ergue a voz o subalterno, ergue o punho
a dobradiça do braço brune
face da lua sob olhar de saturno
nas malhas das redes as mãos sonham
os cabelos da mulher nua na cama
tornar-se besta novamente encontrar
outra palma entrelaçar os dedos, a respiração
(Imagem: Barcos em Mar Tormentoso, Willem van de Velde II, 1672)

O autor
Cristiano Moreira é poeta, professor e tipógrafo. Nascido em Itajaí, em 1973, criado em Navegantes. Estreou na poesia com Rebojo (Bernúncia:2005), seguido de O calafate míope (Papaterra:2009), Infância do Pife (Dengo-dengo Cartoneiro: 2011), As cinco mulheres pagãs com imagens de Fernando Karl (Papaterra: 2013 – Ed. 30 exemplares), Dengo-Dengo- Infanto juvenil ilustrado por Yannet Brigiller (Papaterra: 2016), Dente de cachorro (Nave:2018) e Imagens da Madeira (Papel do mato: 2019) é seu livro de poesia mais recente. Traduziu com Miguel Rodriguez o volume de narrativas Apartados (Papaterra /La Cebra:2011), do escritor chileno Rodrigo Naranjo. Doutor em literatura brasileira (UFSC) com pesquisa sobre o escritor Osman Lins. um dos organizadores e editor de Imprevistos de arribação – textos de Osman Lins nos jornais recifenses (Papaterra: 2019). Sócio da Quinta da Gávea hospedaria e quintal criativo onde está sediado o Ponto de Cultura Biblioteca Rural e a Oficina Tipográfica Papel do Mato em Rodeio/SC, onde vive atualmente.