AUTORAMENTE | Um conto e um poema de João Simino
Conto
Quarenteima
Sei que pode preocupar, mas vocês estão se preocupando demais, esse vírus não é tudo isso, muitas doenças já mataram mais que essa. É claro, muitos ainda vão pegar, se infectar, só que a vida tem que seguir, antes disso se tornar uma neurose, não é o fim do mundo. Fim do mundo, sim, é se o comércio parar e a economia frear, o desemprego é muito pior. O que complica é a imprensa tornando esse vírus uma jogada política, manipulando números, aumentando situações isoladas. Outra coisa são esses hospitais, todo mundo que tá morrendo agora é por causa desse vírus, se cair um ônibus da ribanceira, vão falar que todos eles morreram da doença.
Só peço que se acalmem, essa coisa toda vai passar, só esperar. Me escutem, um dia todo mundo vai pegar, e se pegar, a chance de morrer é muito baixa, como em qualquer outra gripe. E o melhor é que pegue logo, porque aí o seu organismo já ficará imunizado. Agora tem gente que não quer isso, só para controlar a liberdade de vocês. Estão pedindo para ficar dentro de casa, eu é que não vou ficar preso, ninguém pode mandar na minha liberdade. Diga para o trabalhador ficar em casa, ele ficará sem emprego no mesmo dia.
Essa crise foi criada pela imprensa, todos os dias falando desse vírus, do impacto, do número de mortes, é muito alarmista, querem instaurar o caos neste país, logo o povo descobrirá que foi levianamente enganado por eles. Eu digo para você, se você pegar esse vírus, nada aconteceria ou, quando muito, você pegaria um resfriadinho.
A tranquilidade é meu lema, podem sair de casa sem medo, porque se nos acovardarmos e ficarmos em casa, que é o discurso mais fácil, aí será o caos. Tem que encarar esse vírus como homem, não como maricas. Agora estão falando de um remédio preventivo, a hidroxicloroquina, se me oferecerem eu tomo e recomendo. A maioria das pessoas que pegam esse vírus, pode ver, é porque já tinha outras doenças, não se cuidava. E outra. Não sei a crença de vocês, mas eu acredito em Deus e sei que Ele me protege, não devo e não temo. Posso estar tão bem ou tão mal protegido, eu me infectar ou não é vontade dele. Todo mundo tem uma hora, sabe, e quando tua hora chega, não há o que fazer, é questão de ter fé. Eu diria para o país inteiro entrar em um grande jejum para acabarmos logo com esse vírus.
O que o povo quer é voltar ao trabalho, porque se o empregador não produzir, não tem emprego, se ninguém trabalhar, não tem comida em casa e por aí vai. Aí vêm vocês falando do número de mortes. E daí? Querem que eu faça o quê? Não sou coveiro e nem messias, não posso fazer milagre. Lamentar a morte a gente lamenta, né, mas é o destino de todos.
Brasil, 06.02.2021
230.034 mortes.
Poema
CwB
Localizo-me entre
a agitada toca da raposa e a
solitária bota de Judas
Rio Belém
Se a prata deste rio
não fosse rua,
se a rua deste rio
não fosse ponte
o prédio deste chão
seria onde,
aonde fosse quando e se
esse quando fosse agora,
o rio seria um leito
chamado fora.
são casas de cupins, torres de areia
são chapéus extintos, antenas de ouvidos
e seres famintos
são rios e viscos
abraços esguios
escondidos em meio
a olhares arredios
há no chão
uma ponte
de prata
e o rio se
desdobra
em fios de
navalha
uma velha cansada
se arrasta e pergunta:
é aqui, então,
onde tudo se acaba?
(Imagem: Duke, 2020)

O autor
Nascido e residente em Curitiba/PR, é escritor e revisor editorial. Finalista do Prêmio Off Flip 2020 (poesia). Estreou na poesia com o livro Entre a palma e crânio (Kotter, 2019). Organizador do livro Vera-cidade, Fero-cidade, Fuga-cidade: Antologia Entreprosas (Kotter, 2021). Recebeu em 2020 os prêmios Outras Palavras (romance) e de Licenciamento de Obras Digitais (contos), da SECC-PR. Idealizador e curador do grupo de escrita criativa Entreprosas e editor da Revista Trajanos.