LEITURAS XENÓLOGAS | Entre o esquecimento e a invenção*
Depois de publicar exegeses e ensaios, Sálvio Nienkötter faz sua primeira publicação como ficcionista em 2020, aos completar 57 anos de idade, com “Bucólico Desatino” (KOTTER EDITORIAL, Curitiba, 104 páginas). A obra, por sua extraordinária densidade filosófica, existencial e psicológica, faz lembrar “Notas do Subsolo” (1864), do russo Fiodor Dostoiévski.
Ao falecer em 1881, com 59 anos, Dostoiévski deixou-nos romances de excepcional qualidade, desde “Gente Pobre”, publicado em 1846, quando o autor tinha apenas 25 anos, levando o grande crítico Bielínski a vaticinar o surgimento de um gigante da literatura, comparável a Gógol e Pushkin, considerados os maiores escritores da Rússia czarista, até “Memória da Casa dos Mortos”, “Humilhados e Ofendidos”, “O Jogador”, “Crime e Castigo”, “O Idiota” e “Os Irmãos Karamazov”, considerado pelo pai da psicanálise, Sigmund Freud, a “maior obra da história”. Tudo isso realizado no período de apenas 35 anos!
Já o português José Saramago, por sua vez, iniciou sua gloriosa carreira em idade provecta, aos 55 anos de idade, e teve, até sua morte em 2010, tão somente 33 anos para erigir a obra monumental que lhe trouxe o Nobel de Literatura em 1988, com romances que elevaram a “última flor do Lácio” a um novo patamar. “Memorial do Convento”, “Todos os Nomes”, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, “Ensaio Sobre a Cegueira” são alguns dos seivosos brotos da frondosa árvore saramaguiana. Tais exemplos provam que não há idade para o fazer literário.
Deixando de lado o anedotário, entro no que de fato interessa, a começar pela “nota” que Sálvio Nienkötter colocou antes do sumário, a qual, a meu ver, traz informações essenciais para a compreensão da obra, bem como enigmas a serem decifrados. Nela, é nos informado que os contos da primeira parte, e também o conto “Frederico” da segunda, foram escritos por um “afável ancião”, que teria morado na casa de campo adquirida pela família do autor em antiga colônia alemã de Santa Catarina. Observe-se que Sálvio Nienkötter descende de alemães e cresceu numa colônia de imigrantes. Os contos do tal ancião foram encontrados no “sótão de um paiol”, numa caixa de madeira que também guardava “brinquedos feitos à mão”, e, claro, estavam “bem conservados”, o que possibilitou serem trazidos a lume em 2020.
A nota lança-nos o seguinte enigma: trata-se de uma dica a ser seguida ou é um disfarce a ser desprezado. Após ter percorrido os corredores com seus mil dédalos do labirinto, a dúvida persistirá, bem como o desejo de retornar ao “subsolo”. Além de afável, o ancião é “simples e culto, leitor de antigos portugueses e brasileiros”. Tive o privilégio de conhecer Sálvio Nienkötter e privar de sua companhia em tempo suficiente para reconhecer nele tais qualidades. E uma a mais, que Sálvio não refere em sua nota: o seu recato – o que torna compreensível a relutância do ancião em permitir que as “histórias verídicas de sua família” fossem publicadas. De qualquer modo, a fronteira entre ficção e “veracidade” permanece sempre nebulosa em “Bucólico Desatino”, que, como obra de arte, contém um difícil e doloroso remoer de episódios nada bucólicos de uma infância guardada a sete chaves dentro de um sótão (ou de um “subsolo” ou de um “porão”? Tanto faz). Cavoucar de memórias na fronteira entre esquecimento e invenção.

Bucólicos
A primeira parte compõe-se de oito contos. No primeiro, “José”, vemos a inocência de um menino espremida entre a selvagem liberdade da infância e o muro dos dogmas religiosos. A bárbara pureza da criança capaz de levá-la a esticar o pescoço de patinhos (apenas para ouvir o som rouco do pescoço se rompendo) para pendurá-los na cerca de arame farpado, feito instalação, mas, ao mesmo tempo capaz de praticar a virtude do Cristo da maneira mais desinteressada, sem saber o que seja “cristianismo”, para além da hipocrisia gerada pela Religião. Haverá algo mais sublime do que estabelecer como regras de vida esses dois mandamentos aparentemente absurdos: I – Quem perde ganha. II – O último será o primeiro? José e seu irmão adolescente (Tião) chegam ao paroxismo de atribuírem se culpa alheia. “Apanhar no lugar do outro era quase uma bênção”. “Morrer pelo irmão” (como predica João, o discípulo amado) é a fórmula eficaz para se purgar o ódio provocado pela injustiça. Uma sociedade que se medisse por essa escala seria indestrutível. Infelizmente, até aqui, não passou de utopia realizada apenas na Literatura. Somente no sótão dos paióis, ou no subsolo obscuro do inconsciente, ou no jardim secreto da infância, é possível realizar os atos mais sublimes e os mais abjetos, sem consideração a qualquer coisa que não seja a satisfação dos desejos que o mundo dos adultos, com sua moral circunspecta e sisuda, tenta sufocar. Somente na infância das crianças ou na loucura dos manicômios, onde adultos são enjaulados, ou no pensamento selvagem do ser ainda não castrado pela tal “civilização”, é que José, conduzido por Tião, poderia entregar-se sem remorsos à brincadeira do troca-troca com os amiguinhos da vizinhança. Pressentem algo feio no que fazem, pois têm que fazer escondidos. Não compreendem o que fazem, mas sentem que é bom. Tião é seu “guia”, criança ainda, mas com um dos olhos já aberto para a vida. Tem malícia, conhece o bem e o mal, como os adultos o ensinaram. Revela a José certos segredos, retira-lhe a nuvem negra que lhe tapa os olhos. A Justiça e o Amor são cegos. A Infância também é cega ou não quer “ver” o que está fora do “jogo” ou do “processo”, para não se tornar parcial. A infância pratica a Justiça. Se a “cegueira” da infância, desinteressada e inconstante, divinamente desprendida, se prolongasse vida a fora, os tabus com seus interditos perderiam o sentido e se tornariam o espaço da mais completa felicidade. José não teria esperneado quando Tião lhe contou como nascem as criancinhas. Não se sentiria um condenado quando se lembrasse das coisas gostosinhas que fazia com a priminha Nica e do troca-troca com os amiguinhos.
O sentimento de culpa é talvez o primeiro sintoma de que a criança cedeu lugar ao adulto. Na visão cristã, o “erro” humano, alcunhado de pecado, tem conteúdo exclusivamente negativo. Quem peca e não se arrepende já está condenado e vai para o Inferno! A Religião não admite o erro como experiência importante no processo de elevação espiritual. A ideia de um Deus vingativo, que criou o Inferno para que os pecadores sejam nele queimados eternamente, tem afundado os humanos num abismo de desespero sem fim. A culpa leva ao remorso e este ao pavor, que, por sua vez, conduz à paralisia do pensar. Como instituição humana, a Religião não passa de uma construção de classe. No lugar do Cristo que nasceu pobre numa manjedoura e entre pobres viveu e por defender a causa dos pobres foi torturado e crucificado, sem processo, sem prova e sem direito à defesa, erige-se um Cristo intolerante e inclemente, que, em vez de ensinar o amor e acolher as viúvas, órfãos e vulneráveis, abençoa torturadores e tiranos. Um Cristo branco, burguês, hollyoodiano. Sufocada pela religiosidade meramente ritualística, dogmática, a Infância nasce e desenvolve-se em “noites” sucessivas e agoniantes, nas quais quando José ouve Tião chorar apanhando duvida de si e da própria reza. “A culpa afundou no seu espírito tão profundamente que não conseguiu pensar em outra coisa, por muitos dias, muitos meses… Com o tempo, pegou mania de empoleirar-se sozinho no estaleiro do paiol” (pág. 22).
Contudo, paradoxalmente, do conflito entre a liberdade e as grades da opressão surge o ser humano pensante. Esse conflito acontece no “subsolo” ou no “estaleiro do paiol” da mente, clara referência à obra dostoievskiana. Como compreender que Tião, punido exemplarmente pelos pais e por Deus pelos pecados cometidos, aceitasse o castigo divino como algo a ser suportado. A punição faz Tião deixar de ser criança e aceitar a lógica dos adultos, mostrando-se desse modo preparado para viver nesse outro mundo. Foi duro para José ver Tião não mais aceitar as coisas de que fora privado. O pacto entre os dois irmãos foi quebrado e a lógica da religiosidade pervertida e vazia reforçou-se. Aceitar a punição unicamente por medo do Inferno é render-se aos pés de um Deus tirânico criado pela mente humana, um Deus que pune até o pecado involuntário, como a incontinência urinária provocada pela “diabetes insipidus” que corre nas veias do Tião desde que nascera, pela qual era severamente surrado pelos pais e punido por Deus, até que a ciência lhe viesse em socorro. Mas nem assim esse Deus terrível deixa de condená-lo, como não cessa de condenar às vítimas do Covid-19, cuja morte, para esse Deus depravado que destila preconceito e ódio, é a prova irrefutável de uma vida em pecado.
Nos demais contos da primeira parte, intitulados “Juca”, “Justino”, “Pedro”, “Plut”, “Nico”, narrados em terceira pessoa, e em “O sincrético Zé-Maconha” e “Eu tinha Treze e Nenhuma Amiga”, contados em primeira pessoa, aparece o mesmo conflito entre a inata liberdade humana e os interditos de um Deus tirânico e terrivelmente monstruoso; o mesmo escape em face do medo do fogo eterno, a mesma trágica consequência que faz da alma humana um deserto árido e infeliz. Na verdade, “Bucólico Desatino”, catalogado como livro de contos, pode ser lido como novela ou mesmo romance, pela densidade e conexão temática e de questões. A multiplicação dos nomes dos personagens talvez não passe de mais um disfarce da autoria dos “crimes” do ancião do paiol. Medo de um Deus terrificante ou recato, ou ambas as coisas? Não importa. Afinal, é raro um autor expressar tabus inconfessáveis, em palavras impressas, que voam pelo mundo sem que possa recolhê-las. Mais raros são os casos em que um escritor põe personagens em tenra idade, como o Juca, a sentirem “ereção espontânea, de leve faiscar” (pág. 25). A página da descrição minuciosa dos atos de zoofilia está à altura de textos clássicos, como “A História do Olho”, de Georges Bataille, ou “Minha Vida, Meus Amores”, de Henry Spencer Ashbee. “Livre como bicho, criado entre bicho, misturado aos bichos, Juca gostava da Carijó” (pág.27). Não há como não registrar que a cena acontece “debaixo do paiol”, o mesmo onde o manuscrito dos contos do “ancião afável” foi encontrado. Apanhado pelo pai durante o ato, e sendo ao final obrigado a almoçar pedaços de sua tão amada Carijó, Juca gelou. “Era uma galinha, mas era parte íntima da sua vida, da sua vida de menino-bicho a zanzar pelas manhãs vadias” (pág.28). Isso me faz lembrar de vários mitos sul americanos, nos quais os animais, humanos e não humanos, eram gente e acasalavam-se entre si.
Da mesma maneira como o homem, para se reconectar com Deus e entrar no reino dos céus, precisa comer o corpo de Cristo, o “pão da vida” consubstanciado na hóstia sagrada das missas, assim também Juca precisou ingerir, ainda que a contragosto, nacos da carne da Carijó, para purgar-se da culpa pelo seu pecado.
Em “Justino”, a criança de nove anos, atrás do mesmo paiol onde Juca amou Carijó, chora profundamente depois que a irmã adulta lhe revela a chocante verdade da cópula, gestação e parto de uma criança. Chora, mas sente como se já soubesse daquilo há muito tempo, sem o perceber. Daí por diante, a imagem o persegue dia e noite. “Olhava a mãe. Impossível não imaginar. Difícil também segurar aquela ereção precoce e incestuosa. Ereção tesa, comichosa. Mas branca e rosa, pura e pia” (pág. 32). O narrador empresta sua consciência intuitiva à mente da criança que não sabe sabendo. A verdade da vida está lá, latente e pudica, impassível. Como em “Pedro”, menino de oito anos, que só por um triz não foi estuprado pelo irmão mais velho. Raiva e vergonha.
Desatinos
Na segunda parte do livro surgem novos personagens. Ou é o mesmo (e único?) da primeira parte, apenas com nomes diferentes? João, Frederico, Rodrigo, ou os personagens sem nome, enjaulados num manicômio ou na loucura das ruas (em “Retiro” e “Um homem a meu lado no banco da praça”). De fato, esses contos apresentam-se estilisticamente diferenciados, com sofisticação técnica e até mesmo inovações, como em “João” e “Em cruz e ilhada”, levando-nos a pensar que foram escritos por outro autor (como informa a nota inicial do livro). A verdade, porém, é que, quer pela temática, quer pela concisão e densidade de tratamento das questões, a dúvida, ainda bem, se reinstala. Após a leitura do último parágrafo do último “conto”, perdura como que o ressoar de uma orquestra de timbres nervosos, tensos, mas harmoniosos, e muito bem regida, que nos mantém despertos por longo tempo, à procura da nota dissonante, ou, no nosso caso, da “questão”. Pois toda boa obra literária traz consigo uma questão, ou um enigma, a serem decifrados pelo leitor atento, que não aceita que a arte se ofereça como mera peça de diversão.
Qual a questão ou o enigma de “Bucólico Desatino”?
A chave para a resposta é trazida de modo sutil, quase imperceptível, no conto “Frederico”, o único da segunda parte escrito pelo “ancião do sótão”.
“Ora, se somos o resultado da união de um espermatozoide (célula viva) com um óvulo (célula viva), então vivíamos antes da concepção mesma e, portanto, não estávamos mortos antes de viver, estávamos vivos! Embora em outros.” (pág. 80)
Essa concepção ampla do Ser, que se abre para a alteridade e a transcendência, permite-nos vislumbrar “a questão” fulcral do livro, que justifica a sua existência.
Desde sua concepção, no útero materno, ou na incubadora, passando pelas diversas jaulas, gaiolas ou prisões físicas, psíquicas ou morais da vida adulta, o gênero humano, como que dentro de um pesadelo repleto de porões, sótãos e subsolos, num remoer e morrer constantes e dolorosos, debate-se para retornar ao paraíso suave e contínuo da Infância, o avesso de qualquer prisão, onde não há cercas, culpas ou remorsos.
“Bucólico Desatino”, ao permitir-nos adentrar no “sótão” ou “subsolo” do inconsciente reprimido, pode funcionar como um “Abre-te Sésamo” ou um “Vinde a mim” ou um bálsamo para as almas “cansadas e sobrecarregadas” pela opressão física, moral ou psíquica de uma sociedade assentada em dogmas eternos e na hipocrisia.
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(*) Nicodemos Sena é escritor e jornalista da Amazônia, radicado em Taubaté, SP, autor, entre outros, de “A Espera do Nunca Mais – Uma Saga Amazônica”
(Imagem: Paisagem com Dois Meninos, João Batista da Costa)