RESENHA | Favela Gótica, de Fabio Shiva
Victoria Toscani
Quando vemos muito da nossa sociedade em um livro distópico, um alerta surge em nossa mente nos perguntando: “qual o futuro da humanidade?” e “no que estamos nos transformando?”, filosofia acionada com a obra Favela Gótica.
A produção de Fabio Shiva é uma ficção que ocorre em uma realidade alternativa, construída com muita crueldade e hipocrisia; nesse mundo sanguinário, podemos acompanhar a história de uma usuária de drogas que vai exibindo os inúmeros defeitos dos seres que habitam essa realidade, descobre em si um poder antes mascarado e, por fim, exibe os alicerces desse universo meritocrático e falsificado, extremamente semelhante ao que convivemos diariamente.
Dividido em duas grandes partes com subcapítulos, o primeiro tema com que nos deparamos é o mais obvio: o uso de drogas e o tráfico. Com um tom extremamente realista vemos a degradação da personagem principal, Liana, diante da dependência química de uma nova substância, que transforma, não metaforicamente, humanos em zumbis, e que a leva para a prostituição. Mas seria metafórico nas ruas da nossa realidade?
Entre figuras de linguagem e críticas, surge então na trama o sobrenatural ligado intrinsicamente com o caráter. Incorporado às criações do autor, conhecemos o mal de Circe, doença que acomete seres humanos mostrando em forma animal sua natureza interior: traficantes jacarés julgados pela aparência (metáfora?), tarados de baixa renda em forma de porcos, e freiras que se escondem no hábito pelo destino de sua aparência; também conhecemos os políticos vampiros, que, creio eu, dispensam muitas explicações pela constante ocorrência de pleonasmo ao unir essas palavras.
As instituições e grupos sociais, alicerces da identidade das sociedades desde tempos imemoriais, estão nessa distopia com todos os defeitos que existem hoje realçados de forma a induzir questionamentos por parte do leitor: os lobos da polícia e os jacarés do tráfico em eterna caça durante o dia, mas trocando serviços e fazendo acordos escusos enquanto os olhos do mundo não observam, sobrevivendo como parasitas mútuos; os meninos de rua invisíveis, nunca vistos pelos transeuntes comuns, apenas reconhecidos por aqueles que estão na mesma condição social e que são capazes de mostrar compaixão por sua situação; os endemoniados, jovens violentos influenciados por um vídeo da internet, que caçam cruelmente pessoas vulneráveis nas ruas, semelhantes aos neonazistas e àqueles que queimavam moradores de rua durante a madrugada, dentre outros; e por fim, não poderia deixar de aparecer a manipulação da mídia, para tudo parecer natural e perfeito.
Dentre os problemas das comunidades modernas, a destruição da natureza não deixa de aparecer em relances, no encontro de Liana com o Elemental do rio, entidade mística responsável pela vida das águas fluviais, que agora está à beira da morte após o abandono do respeito ao meio ambiente pelo ser humano.
Todavia, além dos problemas sociais e antropológicos mascarados com o sobrenatural e o misticismo, há também o tom de ficção cientifica com os Registros Akashicos, notas em forma de verbetes de dicionário explicando termos da narrativa, que também criam a atmosfera de mistério e tornam-se uma forma de comunicação telepática para introduzir a parte sci-fi da trama: os visitantes de outro planeta, arquitetos do novo mundo.
Atrelada às inovações características de ficção cientifica, têm a Moral e a Ética que aparecem questionando a existência de um lado certo. A ética médica aparece primeiro ao ser posta em jogo diante da necessidade de controlar as pessoas, com cirurgias cerebrais que promovem alteração de comportamento. Outro ponto forte é a venda da eternidade e o significado do dinheiro visto do ponto de vista de seres não-humanos, como código e como seleção, exibindo a meritocracia do capital e o modo animal de idolatrar a economia. Conquanto, o principal debate é o quanto vale uma vida perfeitamente falsificada.
Dentre todos os âmbitos sociais, o religioso não deixou de ter sua cota de metáforas: a reencarnação virtual, os deuses de outro mundo, o esoterismo moderno e suas camadas da consciência, e a engrenagem de tudo isso: o livre-arbítrio que cabe somente aos homens.
Ao fim sentamos em nosso gramado ao entardecer para assistir ao nascimento de uma nova sociedade, consciente e que tem as rédeas do destino na mão.
Sobre o autor

- Cursa Letras Japonês na Universidade Federal do Paraná, onde tem projetos voltados para a literatura japonesa. Experiência com ensino de línguas, além de fazer traduções e revisões em japonês, inglês e português. Colaboradora e resenhista da Revista TXT magazine. Amante há muitos anos da literatura.